Chega a tão esperada sequência de cartas do projeto “Trocando Farpas”, iniciado pela editora Impérios Sagrados. É com alegria que tomo a vez para refletir sobre o tema: “Pode a Literatura falar sobre política sem se sujar?”, na esperança de que de minhas palavras nasça, ao menos, algumas indagações. Afinal, o que há na opinião alheia senão um pouco das verdades que os compõem e que, comumente, são diferentes das pessoas à sua volta — complementam-se. Disso nasce o ponto que, talvez, seja mais sensível no trato sobre políticas: os limites… E isso vale para muito além da literatura em si.
Se estudarmos um pouco a etimologia do termo em questão (política), encontraremos no berço grego sua fonte, cuja água mata a sede dos que vivem em sociedade por meio da busca entre consensos sociais (leis, normas, projetos, intervenções, etc.) em prol do equilíbrio de um Estado (cidade-Estado antigamente), de uma comunidade ou de uma coletividade em geral. Isso é relevante não somente porque carrega consigo o significado do que discutimos, mas principalmente porque vem repleto de símbolos a serem explorados e, quiçá, interpretados. Afinal, é nesta perspectiva que uma discussão se torna razoável — com boa base de fundamentos.
A partir da consciência de uma política nestes quesitos eu abro o questionamento: a que política nos referimos nestas cartas? Creio, em minha humilde opinião, que é imprescindível fazer uma distinção entre política e politicagem. A primeira diz respeito ao esforço individual e coletivo para que uma sociedade prospere em todos os sentidos; ainda que, na prática, não seja o que aconteça, essa é a função originária deste princípio. Ser político, não se trata de ostentar um cargo, ou ter obrigações remuneradas, ou ser visto como alguém importante para a sociedade… Todos nós somos seres políticos por natureza, traçando nossa eterna busca por viver bem e em equilíbrio junto das pessoas ao nosso redor. O que acontece, penso, é que esses valores e deveres, intrínsecos ao ser humano social, foram estigmatizados com o passar do tempo. Entretanto, para entender isso mais profundamente é adequado fazer um pequeno desvio para se aprofundar no assunto (retomarei logo adiante). Quanto à segunda — politicagem —, penso que é o que restou desse estigma: a malandragem por trás das relações sociais em benefício próprio. Em outras palavras, é o ego tentando sobrepor-se aos demais de maneira inconsequente.
Contudo, vamos destilar um pouco mais as questões em busca de algo significativo (estamos aqui para isso).
Partindo da premissa de que todos os seres dotados de consciência têm uma propensão instintiva à política, nascem alguns pensamentos interessantes. Na obra: “The Best Care Possible: A Physician’s Quest to Transform Care Through the End of Life”, escrita por Ira Byock, ele cita a antropóloga Margaret Mead, cuja resposta a um de seus alunos sobre a questão: “qual é o primeiro sinal de civilização?” impressionou a todos. Ela relata um osso (fêmur) curado como tal símbolo… Isso nos faz questionar se, para que exista uma sociedade (independente de suas regras ou propostas) não é necessário que exista compaixão, empatia, tolerância; sentimentos em geral que permitem que um indivíduo não seja uma ilha para o mundo, mas que possibilitam que o mundo engula suas margens com o cuidado de outrem. Antigamente, um osso quebrado era sinônimo de morte, pois, no individualismo, era deixado para trás — presa fácil para predadores. Foi preciso que um grupo se formasse, no intuito de que um auxilie o outro nos momentos de dificuldade para que uma comunidade nascesse. Ouso indagar: não deveriam ser tais virtudes (citadas acima, e acompanhadas de outras subentendidas) parte da política que nos molda uma sociedade? Não deveria estar na empatia, no respeito, no amor os germens para os direitos civis? Não nasceriam daí as responsabilidades coletivas e pessoais? Afinal, política não é somente sobre ter seus direitos respeitados, tampouco apenas no cumprimento das obrigações sociais, mas tende a ser uma prática harmoniosa entre as duas fontes, onde as águas se encontram para que o homem não morra de sede no naufrágio de sua alma. Contudo, onde toda essa raiz se perdeu? Foi na corrupção humana, certamente. Foi na luta que trava consigo desde outrora para sobreviver a qualquer custo, ainda que, para isso, os demais fiquem em segundo plano — largados para sobreviver por si sós.
Todavia, eis de indagar: e o que tudo isso tem a ver com literatura? Ora, rebato daqui, como poderia ser diferente? Tal qual a política, a literatura ajudou a moldar o homem social. É na literatura que, pelo menos seus líderes, e o homem moderno (quando a escrita e a leitura passaram a ser mais acessíveis a todos), edificam também sua capacidade política. Quando os representantes de uma comunidade são pessoas instruídas e conhecedoras de sua própria cultura e necessidades, daí tendemos a um Estado mais justo e ético. Porém, falar de ética na política — ainda mais atualmente — é ser alvo de gargalhadas… Por que será? Voltamos ao estigma, não é mesmo? Não estaria na ignorância a fonte? Fica a indagação.
E o que há de tirar o pobre espírito humano dos males que o afligem por sua incúria, por sua petulância, por seu preconceito? Não estariam nas páginas de um livro uma alternativa mais suave, nos textos de um sábio a solução, nas palavras de um santo a salvação? Da poesia não se faz apenas um poeta, mas nasce, quem sabe, Nelson Mandela, que se agarrou a um poema vitoriano de William Henley para sobreviver à sua prisão na África do Sul… saindo de lá, quê fez ele? Vingou-se? Não, ajudou uma nação a se unir contra o preconceito e acendeu a lamparina do respeito e do perdão acima dos interesses pessoais. Limites foram estabelecidos, outros foram quebrados. Eis um verdadeiro líder à frente de seu povo, que é capaz de vencer a si mesmo em favor de sua pátria. É, ainda, da literatura que nascem as crenças, os pontos de vista, as ciências… os artistas, os médicos, os políticos e os professores que ensinam a todos eles. Como poderia estar ela separada da busca do homem pela harmonia social?
“No entanto, suja-se a literatura neste contato?”, questionarão. Penso que é preciso empoeirar-se para construir um castelo com as próprias mãos, ainda mais quando são muitas mãos juntas no mesmo objetivo. A dificuldade está, creio, quando uma mão coloca um tijolo e a outra derruba o muro… E não falo simbolicamente, pois, que bom seria que uma mão edificasse a base de uma sociedade enquanto outra derrubasse as muralhas preconceituosas que separam os homens. Não, refiro-me a quem distorce a capacidade humana de ser ético, deixando a moral à mercê do niilismo e da ignorância, a política às traças das más inclinações. Ainda assim, não é necessário sair no braço — ainda que apenas em sentido figurado —, no mais das vezes, para que a voz da justiça seja ouvida acima da iniquidade humana? Que representam os exilados na ditadura senão quem ousou discordar da intolerância, da injustiça, da escravidão indireta de todo um povo por meio da literatura, da música, do teatro? Mergulharam na lama, sob as ameaças de prisões e crueldades, torturas e exílios, para que um país respirasse novamente além do torvelinho de medo e dor. Enfim… há tanto a se cogitar…
Quanto a nós, que cabe em nosso pincel? No quadro que montamos na jornada de nossa vida — em especial a nós, leitores e escritores —, que traços damos à paisagem que nos cerca? Ouso dizer que a tinta é, em nosso cotidiano, a literatura que nos ajuda a exteriorizar ao mundo o que conta nossa alma. Indiscutivelmente, nossos contos e pincéis se encontrarão com os das pessoas ao nosso redor… É assim que formamos um quadro maior, uma arte mais abstrata e subjetiva, tais quais as de Van Gogh. Por fim, no contato entre uma tinta e outra, nasce uma política necessária e carente de luz. Luz de verdade, de virtudes a mil… a qual, na flâmula varonil se ergue uma bandeira para todos, sem distinção. Porque, quando o dia acaba, resta-nos a sujeira que nos impregna nas dificuldades do dia-a-dia, contudo, cabe a nós bater a poeira embora e lavarmo-nos nas águas da sabedoria… que só a literatura traz com tantas vozes e cores, sabores e amores, para todos os gostos e sentimentos.
Poema de William Ernest Henley (A Book of Verses - 1893):
Dentro da noite que me rodeia
Negra como um poço de lado a lado
Agradeço aos deuses que existem
Por minha alma indomável
Sob as garras cruéis das circunstâncias
Eu não tremo e nem me desespero
Sob os duros golpes do acaso
Minha cabeça sangra, mas continua erguida
Mais além deste lugar de lágrimas e ira,
Jazem os horrores da sombra
Mas a ameaça dos anos,
Me encontra e me encontrará, sem medo.
Não importa quão estreito o portão
Quão repleta de castigo a sentença,
Eu sou o senhor de meu destino
Eu sou o capitão de minha alma.
"Porém, falar de ética na política — ainda mais atualmente — é ser alvo de gargalhadas… Por que será? Voltamos ao estigma, não é mesmo? Não estaria na ignorância a fonte? Fica a indagação."
Fica a indagação: O que nos cabe nisso tudo?
Boas reflexões rapaz! Uma forma poética de expor os nossos dejetos sociais.
No que se pode definir como um jogo de não sujar e sujar-se ao falar de Política, existe sempre a possibilidade de fugir. Mas, a fuga é uma imensa covardia, uma intensa oferta de fundamentos para a nossa tendência natural em ter medo: medo de perder Seguidores, medo de perder amizades, medo de perder amores e medo de perder o cômodo assento social que escolhemos para nos adequarmos à Sociedade. Um jogo tenso, mas que, falando por mim, não me nego a jogar, como o vosso texto denuncia, enuncia e anuncia nas entrelinhas como uma meta dentro da nossa Escrita.
Você já nos conquistou logo nas primeiras frases quando afirma que "creio, em minha humilde opinião, que é imprescindível fazer uma distinção entre política e politicagem"... Um dos legados da fenomenologia ao mundo é voltar ao nascimento do conceito em sua forma originária. Você faz isso exemplarmente bem e deixa o texto com um riqueza invejável. Talvez tenhamos que voltar, também, ao próprio conceito de literatura. Fica o desafio para a próxima carta kkkkk.
Mas como tudo é treta nessa casa, você parece evitar falar da literatura voltado para o capitalismo representado nos tiktokers e youtubers da vida e, também, para a necropolítica em que o ser humano se torna descartável. Será que contaremos com esses pontos em outras cartas?
"Porém, falar de ética na política — ainda mais atualmente — é ser alvo de gargalhadas… Por que será? Voltamos ao estigma, não é mesmo? Não estaria na ignorância a fonte? Fica a indagação."
Fica a indagação: O que nos cabe nisso tudo?
Boas reflexões rapaz! Uma forma poética de expor os nossos dejetos sociais.
As pessoas que gargalham já devem ter se acostumado com o cheiro dessa podridão.
Pois é... de tudo vale um pouco. Do meu lado é sempre numa ótica tendenciosa ao otimismo, embora nem sempre pareça.
No que se pode definir como um jogo de não sujar e sujar-se ao falar de Política, existe sempre a possibilidade de fugir. Mas, a fuga é uma imensa covardia, uma intensa oferta de fundamentos para a nossa tendência natural em ter medo: medo de perder Seguidores, medo de perder amizades, medo de perder amores e medo de perder o cômodo assento social que escolhemos para nos adequarmos à Sociedade. Um jogo tenso, mas que, falando por mim, não me nego a jogar, como o vosso texto denuncia, enuncia e anuncia nas entrelinhas como uma meta dentro da nossa Escrita.
Você já nos conquistou logo nas primeiras frases quando afirma que "creio, em minha humilde opinião, que é imprescindível fazer uma distinção entre política e politicagem"... Um dos legados da fenomenologia ao mundo é voltar ao nascimento do conceito em sua forma originária. Você faz isso exemplarmente bem e deixa o texto com um riqueza invejável. Talvez tenhamos que voltar, também, ao próprio conceito de literatura. Fica o desafio para a próxima carta kkkkk.
Mas como tudo é treta nessa casa, você parece evitar falar da literatura voltado para o capitalismo representado nos tiktokers e youtubers da vida e, também, para a necropolítica em que o ser humano se torna descartável. Será que contaremos com esses pontos em outras cartas?
Esses temas sobre Capitalismo e Necropolítica são interessantes. Se até a chegada de minha próxima carta ninguém falar neles, incluo na minha.
Boa ideia de tema para você explorar
Sim, será efetivado na minha próxima carta.
Eu tendo mesmo a ser mais apaziguador no mais das vezes... Utopias de um espírito sonhador. kkkk
Ou um ótimo Diplomata. A ONU geralmente privilegia pessoas que tendem a pensar os conflitos dessa forma.
A extrema-direita adora quem fica em cima do muro.
Não há tolerância com quem é intolerante, para que assim a tolerância não desapareça. Popper tinha razão.