Há um pano vermelho que rasga o meu quarto. Um fluxo de sangue que conduz meu corpo até o próximo passo. Há uma árvore balançando do lado de fora de tudo isso, com um olho no meio formado por folhas verdes e discretas. A condução sem limites entra na válvula e sai pelos poros. O toque impreciso.
A próxima sequência das notas é aquela que menos diz. A próxima da próxima é aquela que finge se ausentar. A última é aquela que já não emite som. É ali que o pano vermelho perde o sentido e começa, num toque sútil, buscar o inexpressível. Flui como um quadro pintado no meio do nada branco. As telas voam na sala e caem no chão sem fazer barulho — elas são silenciosas dentro do possível.
Agora o esquecimento perambula feito um bêbado na minha corrente sanguínea — seria disfarce, foco, razão ou simulação? Não há mais nada entre o pano, a tela, o homem e a árvore. Todas as coisas agora buscam a mesma nota final silenciosa e voraz, capaz de rasgar toda visão num corte específico desajeitado.
Na ponta do abismo, o urso marrom observa a neutralidade dos pensamentos voadores em busca de acolhimento. A ausência de significado em todas as coisas no ar. O ar emerge do absoluto, cria vespas que entram nos ouvidos dos mudos e absorve, num toque em lá maior, todos os sonhos embutidos, feito mato.
Na cena, o cigarro se contrapõe ao pianista. O desfoque é nítido: não sabemos o autor das notas imaginárias e aquáticas. Não sabemos qual será seu próximo passo ou seu último suspiro. Surge uma série de dúvidas: será ele a própria nota ainda não tocada? Será ele, ainda que na ausência de limites, o próprio buraco vazio sendo enchido pelos ruídos internos, ancestrais? Não há virtude maior. Aquele banco ainda exibe seu charme ainda que ninguém esteja sentado nele? A força é a mesma em todas as vezes?
O plano se estende — não há como saber, ao certo, o tamanho da sala. O sol entra, bate no espelho dourado no chão e sobe até o teto, criando um grande retângulo firme. As moscas do lado de fora sentem uma necessidade quase que suicida de se tornarem martelos. A árvore observa como uma grande plateia sonolenta, criando vácuos, vertentes, sentimentos, nada. — nada. — nada de específico em palavras soltas ou voltadas ao centro do acaso.
Há um pano cinza rasgando meu quarto. Ele entra pelo meu ouvido, dá um nó no meu cérebro e deságua perto do viaduto esquecido. O cigarro cai, rola até o pianista e desaprende a falar. Só há espaço a uma pessoa neste canto. Só há um coração para este inferno. Nada mais. — nada. — nada.
Alguém olha para fora, observa com medo o balançar das folhas da árvore: qual o próximo passo? Fechar os olhos? Acender a vela? Entupir-se de palavras esquisitas?
A árvore se volta ao horizonte, virando-se totalmente de costas à sala — sendo rasgada por um pano preto.
De que lado se observa uma árvore? De qual plano se observa o cigarro? O quão plano pode ser um pano preto rasgando o pianista que se perde descompassadamente nas notas que se perdem nos vãos do piso branco? É necessário pintar o chão. Criar nele espaços assim como o espelho criou no teto. Mas agora não há sol para refletir. O espelho quebrou de tristeza. O espaço já foi usado e não tem previsão de retorno. O retorno foi mencionado para que não houvesse mais volta. O piso foi citado para que não houvesse mais onde pisar. Tudo foi descrito para que não houvesse a necessidade de existir nada.
Sou um grande mentiroso: as cenas não são tão reais. O pianista morreu há muito tempo. O espelho não está no chão — ele está na parede esperando observar uma pessoa em pé. O piso já está pintado de sangue — cru sangue. A árvore nunca teve a pretensão de virar as costas. O cigarro já está apagado e não há câmera filmando o plano. Não há nada que já não tivesse aqui. Não existem moscas filosofando em grandes proporções. O piano? Este está desengatado das notas; elas estão submersas no sangue do desconhecido. O escritor está morrendo. Lentamente morrendo. Enquanto isso, se ajeita na cadeira para escrever o próximo passo.
Se soubéssemos que o próximo passo continua tão longe…
As mãos estão sujas, fedendo, e ainda não há previsão de sanidade.
Que soco... Nossa... Você já leu o livro "Lavoura Arcaica" do Raduan Nassar?