Tibério saiu para caminhar em seu primeiro dia de aposentadoria. O salário mínimo não bancou aquele sonho de velejar ao redor do mundo. Passear a pé ao redor do bairro onde morava foi o jeito. Íngreme, a descida dava vertigem aos visitantes desacostumados. Ele se arriscava pela pista invés de usar a calçada, seus vizinhos construíram rampas para os carros formando degraus de quase um metro de altura. As lixeiras ocupavam metade da passagem e os postes a outra metade. Apenas formigas conseguiam percorrer o perímetro da calçada em linha reta.
Na avenida, lá embaixo, Tibério encontrou Carlinhos indo ao mercado.
— Parabéns pela aposentadoria Tibério! — Acenou Carlinhos ao cruzar o amigo.
— Você reparou como essas calçadas são ruins? — Emendou Tibério irritado — Alguém devia fazer uma reclamação!
Carlinhos parou de lado, como se não se contivesse em fazer um comentário:
— Rapaz, ontem fui no postinho tomar vacina, misericórdia! Um mausoléu caindo aos pedaços, só tinha uma moça pra atender todo mundo. Mas não adianta reclamar, eles não fazem nada!
Tibério sorriu concordando, ambos seguiram seus caminhos. Reparou nos fios emaranhados dos postes, aquilo devia ser perigoso, havia pombos, pipas enroscados e tênis velhos. Os próprios postes eram tortos, cobertos de cartazes ininteligíveis e pichações. No caminho desviou-se de buracos, cocôs de cachorro, moradores de rua, um vendedor ambulante, um pregador da Bíblia e mesinhas de bar.
— Alguém devia mesmo fazer uma reclamação! — Disse consigo.
Estava a ponto de desistir de caminhar então lembrou-se de um parque bem arborizado no bairro vizinho.
Parado no ponto de ônibus encontrou dona Lurdinha.
— Dona Lurdinha, vou ao parque fazer caminhada!
— No parque? — Reagiu a senhora com espanto.
— Sim, aqui está muito ruim, a rua é intransitável, eles só pensam nos carros.
— Não faça isso! Tá cheio de assaltante naquele parque agora. Outro dia levaram a bolsa da Rosa, ela fez boletim, não deu em nada. Perdeu duzentos reais e precisou tirar uma nova carteira de identidade.
— Ela devia reclamar com alguém disso, você não acha?
— Ih, meu filho, eles não resolvem nada. (Dona Lurdinha já era uma vovozinha quando Tibério ainda tinha seus cabelos pretos, por isso tratava a todos por “filho”).
O ônibus chegou e Tibério precisou esperar os passageiros se espremerem um pouco antes de conseguir embarcar. Lotado, o transporte seguiu rumo ao bairro vizinho. Dona Lurdinha iria no próximo. Sentado no lugar reservado para idosos, um rapaz dormia.
— Eles deviam colocar mais ônibus nessa linha, está sempre lotada! — Esbravejou um passageiro indignado.
— Esse negócio de ônibus tá tudo na mão da máfia — comentou um outro arrancando risos do motorista.
Vinte minutos depois, Tibério desembarcou no destino. Dona Lurdinha tinha razão, com mato alto, vielas desertas e sem manutenção, o parque transmitia insegurança. O aposentado seguiu resoluto em busca de momentos de lazer e merecido descanso. À frente, homens e mulheres comiam e bebiam rodeados de papel amassado, embalagens e latinhas, crianças se penduravam em playgrounds enferrujados diante de casais a se esfregar chegando quase às vias de fato e de um grupo de jovens a fumar maconha.
Tibério rodeou o lago, entrou numa trilha, saiu do outro lado. Chegou a uma área do parque com pista de skate e uma quadra. Uma equipe de TV fazia uma reportagem mostrando a degradação do local a muito não frequentado exceto, talvez, por algum fantasma dado seu aspecto lúgubre. O repórter o abordou.
— O que o senhor está achando da situação do parque?
— Acho que combina com a cidade.
— Combina com a cidade? Como assim? — Indagou o repórter com surpresa.
Tibério pegou fôlego e enumerou as palavras nos dedos das mãos.
— Arruinada, decadente, abandonada, triste, melancólica, destruída, devastada, em escombros, esquecida e negligenciada.
A sequência de adjetivos virou meme na internet com a reação tragicômica do repórter olhando para Tibério e para o cinegrafista com olhos arregalados e perdidos por se tratar de uma transmissão ao vivo. Internautas editaram o vídeo, um fez Tibério cuspindo fogo e colocou uma voz demoníaca nele, outro fez uma música divertida e em uma das versões feita por inteligência artificial, zumbis perambulam ao fundo enquanto Tibério desabafa. Uma das publicações recebeu curtida do perfil oficial da prefeitura e do secretário de obras públicas. Até agora, entretanto, nada foi feito.
Tibério fez exatamente aquilo que eu gostaria de ter tido a chance, mesmo sabendo que ninguém vai fazer nada.
O melhor é a prefeitura curtindo os memes que detonam a si própria. Muito sinal dos tempos… O Tiberio, lá no bairro onde eu cresci, seria chamado jocosamente de “inspetor de quarteirão” pelos mais educados, e de Zé C* pelos mais diretões. 😂